21/09/2013

miguel

Com um sorriso nos lábios comentava que se adaptara lentamente aos ataques de tosse que eram cada vez mais frequentes. Sabia que o mais provável seria morrer num deles, por isso entendeu por bem ganhar intimidade com a enfermidade. Uma gargalhada sonora ou um pranto incontido, poderiam desencadear uma crise e abreviar o seu tempo de vida.

Durante anos desafiou a morte, roubando a si mesmo vida e agora procurava a eternidade antes de sufocar.
Visitei-o há menos de um mês. Estivemos sentados um em frente ao outro, calados. A nossa amizade sempre foi silenciosa. Nossos lábios selados contavam histórias. Nosso corpo morno e suado, confirmava-as. Sagrado encontro que dispensava a palavra.
Uma chuva miúda anunciava o inverno. Miguel começou a tossir. Levantei-me para acudi-lo, mas a sua mão direita disse-me que não.
Fui para a janela, fugindo da presença perversa daquela doença. Silêncio, de novo.
Voltei para a poltrona. O nosso olhar a dizer pesar. Uma parte de nós sabia onde morava o desconforto, outra temia por ele. Cruzei meus braços, abracei-me como se meu corpo fosse ele. Foi à estante, tirou um livro e deu-me.
- Abre e lê ao acaso
Fechei os olhos, deixei que as páginas dançassem na ponta dos meus dedos. O acaso tem caso com o Diabo. Abri os olhos e li:

Grande diálogo será esse contigo
quando de todo recolheres
a linha dos meus dias
e eu for varar na tua face
com o meu cumprido olho de peixe
Aceita eu ser uma só palavra
e  nela  todo  dizer-me
Talvez então eu  sinta
no compromisso do olhar
que já te conhecia e nenhuma outra praia
para o meu  coração  via
Mas eras ou não eras pescador
grande demais para dois olhos
que só a tua ausência enchia?
Recebe no teu mar senhor
meu íntimo destino de algas e de escamas
(Ruy  Belo In Aquele Grande Rio Eufrates)

A minha voz sumia...
- Tem calma. Inspira e quando soltares o ar, lê. Fecha os olhos e sente o poema. Basta-te o poema.
A mim basta-me sentir-te quando te ouço. Ele será teu e a tua voz minha. A nossa travessia..

Olhei em redor. Da janela o sol anunciava a despedida e uma luz vermelha pousava na face direita, de Miguel, enquanto a outra permanecia quieta na sombra. Estávamos no seu escritório. O mesmo que fora de seu pai. Todas as paredes repletas de livros. Duas poltronas bordeaux e uma secretária onde repousava o computador compunham o resto da sala.
Arrumei o naperon, cor de mel, da minha poltrona.
- Levanta-te, Rosa.

Durante anos, as nossas tardes de quarta-feira, eram assim. Miguel descobria um texto, sorria e punha-me a ler. Antes da leitura, eram as nossas brincadeiras. Bella Ciao e roubava-me um beijo. Abraçados rodopiávamos em passos pequenos, até que o corpo pedisse trégua.
- Dá-me água que tenho sede, Miguel.
Olhava-me de cima e gargalhava.
- Vem buscá-la…
Voltava a correr pela sala até que eu esgotada abandonava-me no chão.
- Miguel…

- Rosa?
Desperto do passado. Meu amigo está cansado e pede-me de novo que leia ‘Escatologia’.
Sem pressa, repouso em cada palavra. Sinto o meu coração e fecho os olhos.

Talvez então eu  sinta
no compromisso do olhar
que já te conhecia e nenhuma outra praia
para o meu coração via

Chorámos de mansinho, quase em silêncio.

Mas eras ou não eras pescador
grande demais para dois olhos
que só a tua ausência enchia?

- A minha vida escapa-se leviana e parece ter pressa, Rosa.
- Ainda é vida, Miguel.
- Onde foi que errámos, Rosa?

Sento-me aos seus pés e encosto a minha cabeça nos seus joelhos.

Ta, tata, ta, tata, tatatata…
- De onde vem a música, querido?
Sem resposta, faço como Miguel e deixo-me dormir.
Passa das dez, quando acordo sobressaltada com um choro surdo, ferido. Aurora, irmã de Miguel, abraça o meu amigo que partiu enquanto eu dormia.

Recebe no teu mar senhor
meu íntimo destino de algas e de escamas.

Onde foi que errámos, Miguel?
Na rua habitam famílias,
nelas a fome é companheira
Em cada esquina
a miséria é aliada do frio
Dizem que os tijolos são dos ricos
e o céu dos pobres
Por isso a liberdade nasce
e morre nas favelas
Bendito sejas
não seres testemunha
deste epílogo.
Desilusão que nos assiste.

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