19/05/2013

em busca do ar

- Toma um calmante, coloca a máscara e vai dormir. Amanhã é outro dia.
Foi assim que o Carlos respondeu ao meu queixume sobre a crise de falta de ar que há dias toma conta dos meus dias.
Antes que eu tivesse tempo de responder, deu-me um beijo e disse-me adeus.
- Vá, miúda. Trata de ti e arruma a tua vida.
Em menos de cinco minutos, senti que qualquer coisa semelhante a um trator tinha acabado de passar por cima de mim.
O João tem-me visitado diariamente. Era comum sairmos para almoçar no bairro alto e a seguir descermos as escadinhas do duque a correr. No fim, entre risos, um abraço selava a nossa amizade.
Desde que revi o Carlos, lembro-me do João. Fomos os três camaradas na revolução. Desejámos com a mesma intensidade um mundo novo. Se o excesso pautava a vida, ele era fruto da vontade que tínhamos de existir. Quando a nossa voz parecia uma só, o corpo vibrava e chorava como se o mundo tivesse outra forma. Com a mesma intensidade do abraço, no último degrau da escada. Um coração no outro e a mesma respiração. O amor ao alcance de um beijo que nunca aconteceu.
O 25 de Abril foi ficando morno e a vida perdendo poesia. Deixei de ver o João. Mudei de vida. Fugi em busca de me encontrar. Já não nos víamos há alguns anos quando combinámos almoçar. O sorriso do meu amigo escondeu-se na ironia. Disse-me sem explicar a razão,  que estava aborrecido comigo. Não me interessei pelo assunto. Saí do almoço com a certeza que a nossa amizade não era a mesma. Um dia contaram-me que tinha morrido.
Na parede do meu escritório vive uma estante cheia livros arrumados de acordo com o dia em que os acabei de ler. Há outros que nunca chegam à estante. 
Os livros não morrem como os amigos. Mesmo que estejam catalogados como lidos, sempre posso voltar a folheá-lhos. O encontro será outro e voltará a ser presente. Poderei reler devagar. Alongar o olhar em cada parágrafo e respirar.
O meu amigo visita-me como se fosse um disco riscado.
Queria ter respondido ao Carlos que antes de adormecer quero aprender a ler nos espaços não escritos e quando o João vier me abraçar, contar-lhe que resta a lembrança da nossa bem querença.

Entre palavras, encontro o vazio. Nele largo o ar que tenho escondido no peito.

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