27/05/2013

canela

Canela nasceu há mais de cinco anos. Desde então tem sido, de alguma forma, o personagem de onde nascem quase todas as minhas histórias. Foi ela a responsável, por um livro que mora entre os ficheiros do meu computador:- Setembro dos Desgarrrados. Mesmo quando o texto parece nada a ter ver com Canela, com atenção descubro a seguir que ainda tem. Canela, um dia destes, vai subir ao palco ou à tela. Por aqui, relembro-a:

CANELA

Canela está saudosa das mãos que se encontravam simplesmente para dar um passeio. Agora, os tempos são outros, sua mão direita só encontra a esquerda. Em criança, levantava o braço e havia sempre uma mão a indicar um caminho. Mesmo nos passeios conhecidos da sala para o quarto de dormir. Deitada, antes que o sono fosse senhor e dono do seu corpo, uma mão embalava seus dedos pequenos. Mais tarde, eram mãos agitadas que descobriam o suor de cada passo.
- A menina dança?
Timidamente, entregava sua mão direita antes que o abraço rodopiasse na sala. Antes do amor, as mãos davam as mãos prometendo uma aventura sem fim.
Hoje, Canela tem suas mãos solitárias. Cansada da saudade já tentou matar a memória de um tempo que nem ela sabe se é mesmo verdade.
Francisca almoça todos os dias com ela. Ao meio-dia, pontualmente, Francisca beija a face de Canela
- Olá mamã, boa tarde. Estás melhor hoje? Podemos almoçar já? Desculpa mas estou atrasada…
Canela esboça um sorriso esperado. Francisca de dia para dia atrasa-se cada vez mais. Há-de chegar o dia em que Francisca vai telefonar avisando que já não consegue vir. Até lá, Canela faz-lhe o almoço da praxe.
- Hoje pareces melhor mamã, adivinho um sorriso no teu rosto. O que houve? A dona Felícia morreu?
Canela volta a sorrir. Francisca fez da ironia sua fiel companheira
- Vá lá mamã, conta-me. Nunca te vi essa cara ...
- Vi na televisão um anúncio de mãos.
- ?
- Francisca, hoje já se vendem mãos.
- Oh mamã, são próteses. É de uma empresa de próteses esse anúncio.
- Mas já há lojas para quem queira comprar. Lojas de rua. Eu vi no anúncio. Até tem uma loja ao pé da casa da Tia Josefa, na rua de São Paulo quase na esquina da Rua Aprazível.
- Mamã, mamã… Cada vez percebo menos a tua fraca cabeça. Olha a massa está muito cozida, o ovo está salgado, o feijão tem chouriço e tu estás farta de saber que não como carne! Gaita, até parece que não me queres cá. E eu ameaço ouvir um sermão do meu chefe e tu te distrais sempre! Cada vez mais! Olha vou-me embora. Quando colocares a cabeça no devido lugar apareço. Meu Deus, mamã! O que faço contigo?
Canela leva as mãos à cabeça numa tentativa frustrada de encaixar o crânio sem deslocar os olhos. Num sorriso, agora patético, desculpa-se da indelicadeza da sua distração.
Com um beijo irritado, Francisca apressa a despedida.
Canela levanta a mesa ritmadamente. Com mãos firmes lava a louça, arruma a cozinha, belisca o ovo salgado, o chouriço proibido, em vez de deitar a comida da filha no lixo.
Canela não sabe bem porquê mas está quase feliz. Despe a roupa suada e como sempre prepara-se para a sesta. Todos os dias tão parecidos são, que podia jurar que eram sempre os mesmos todos os dias.
Deitada na cama entrega seu corpo ao descanso. O anúncio da TV visita o desejo. Canela não dorme, mas sonha.
- E se eu fosse ver essas mãos? Um arrepio percorre seu corpo ansioso.
Apressadamente abre as gavetas de uma cómoda mofada. Sem fôlego procura seu uniforme de enfermeira-chefe.
- Será que preciso do chapéu? E do casaco azul? Mas está tanto calor! Mas não me esqueço dos óculos, ah isso não! Se Francisca me visse agora? Falta meu baton vermelho…
Canela está pronta! Um ameaço do que foi outrora. Delicadamente, pacientemente atravessa a rua. Acena para um táxi e pede:
- Leve-me à Rua de São Paulo na esquina com a Rua Aprazível, por favor.
Canela disfarça seu nervosismo sorrindo, falando do tempo, que lhe tem passado ao lado há já tantos anos.
A cidade fica distante, bem uma hora de caminho - o tempo de uma vida, de um ameaço de morte. O tempo de um coração agora acelerado. No caminho adormece embalada pelos buracos da estrada. Uma mão, nem bonita nem feia, convida Canela. Aponta o mar que contorna o passeio, agitada esconde-se do sol, marota dança em cada esquina, Canela sabe agora que está mesmo feliz.
- Senhora? Acorde que chegámos!
Envergonhada essa mulher de mãos solitárias desculpa-se mais uma vez da sua distração. Afinal deixou-se dormir e não impediu o sonho.
Bem em frente, no outro lado da rua uma vitrine repleta de mãos. Amarelas, azuis, cor da pele, com luvas rendadas, outras rugas. Mãos, mãos, mãos!
Num passo apressado atravessa a rua. Em frente da loja para. Respira, inspira. Sem sucesso tenta o encontro do eixo. Leva as mãos à cabeça, desloca o pescoço num gesto firme e rápido para a direita e esquerda. Por fim o crânio encaixa, os olhos focam e a face encontra a paz desejada. Abre uma porta elegante num gesto fresco, feliz de quem sempre soube como é bom existir.
Pernas, pés, braços e .. Mãos! Uma loja que promete um membro a quem o tem amputado.
Canela encontra sem dificuldade o que precisa. Bem no centro de uma enorme sala um cilindro de acrílico expõe mãos. De todos os tipos, para todos os gostos. Se você nasceu para a música e por desgraça teve a mão amputada aqui encontra a mão substituta que trará de novo o som da sua alma.
Canela decidida pergunta ao jovem vestido com o uniforme da marca:
- Boa tarde procuro uma mão, não importa o tamanho.
- Só vendemos com receita.
- Não vê que sou enfermeira? Venho de uma urgência hospitalar.
- É necessário o tamanho, entende? Não podemos vender uma mão de um anão para ser colocada num terminal de um gigante. E depois há os velhos - esses não se adaptam a uma mão de um adolescente. O inverso continua sendo verdadeiro. E as nossas mãos além do mais são articuladas...
- Ah, sim? Para quê a compatibilidade se elas já se mexem? Não basta?
- Percebo que não está familiarizada. Uma mão de um velho nervoso fará muito mal a um jovem estudante. Todas nossas mãos são feitas de várias memórias. Assim o ritmo varia. É complexo. Isto não é um hipermercado.
- Sou enfermeira. Sei do que falo. Tenho aqui a receita. Basta-me uma mão, seja qual for. A única preferência é que saiba dar um bom aperto de mão. O paciente é caloroso. Tinha uma mão que em tudo tocava. Um tacto apurado. Uma vontade de ser..
- Vou perguntar ao meu gerente, senhora?
- Canela.
- Um momento, por favor.
O jovem volta as costas, vira à esquerda e se esconde num canto onde a luz deixa de existir. Cansado, agacha-se e chora baixinho. Miguel já não suporta tantos pedidos sem nexo. Diariamente aparecem dezenas deles, supostos bombeiros, enfermeiros ou médicos. Ninguém quer ver o catálogo. Ninguém pede uma mão definida. Que epidemia é esta? O gerente não reclama. Sorri sempre e diz:
- Faz de conta que percebeste e vende! É para isso que estás aqui!
- Mas e a ética?
- A nossa, é satisfazer o cliente.
- E se as receitas forem falsas?
- Não sou polícia Miguel. E que mal há em vender uma mão a quem quiser comprar? És dono da mão alheia?
Miguel desistiu de entender. Desde há um tempo que a sua mão direita sofre de dormência. Foi perdendo a força lentamente. Nada em casa restitui a alegria que tinha. À noite, quando adormece ,sonha com os membros desmembrados. Miguel quer fugir, queimar todos os catálogos que explicam que mãos ele deve vender.
Mais calmo regressa ao centro da sala.
- Senhora Canela...
- Diga...
- Quer ver o nosso catálogo?
- Jovem, preste atenção: a mão que preciso já lhe expliquei. Se é grande ou pequena, jovem ou velha, pele amarela ou negra não me interessa. Basta simplesmente que saiba dar um aperto de mão...
Miguel ainda ameaça um ‘mas’ enquanto Canela sorri carinhosamente. Abre o expositor, tira uma mão de um rosa desmaiado – sem vida.
Canela assusta-se. Que mão era aquela? Com tantas outras coloridas e ele oferece-lhe a mão mais morta da loja.
Miguel segura então o que deveria ser o cotovelo e num gesto educado cumprimenta Canela.
- Muito prazer…
Um arrepio percorre o dorso da enfermeira-chefe. A memória de um calor tantas vezes vivido vai acordando os sentidos. Mamilos erectos, a boca alagada, um estremecer esquecido no baixo ventre e de repente um grito:
- FICO COM ESTA!
- Vou embrulhá-la…
- Não, não é preciso eu levo assim mesmo. Vou pagar e já volto. Não fuja daqui Miguel.
O jovem cansado sorri e promete que dali não sairá nunca. Os jovens são muito dramáticos.
Canela volta do caixa ansiosa. Pega na mão que não sabe se é Maria ou João. Discretamente agarra-a em sua mão. A vida volta a ter sentido.
De mãos dadas sai da loja. Com a mão esquerda que está livre chama um táxi. Com a direita vive.
Perto de chegar a casa pede ao táxi que pare. Está um lindo pôr-do-sol e Canela quer mostrar à mão amiga a paisagem na praia. De mãos dadas passeia na areia, arrojada, mergulha na água salgada - sempre com a mão direita bem apertada à mão companheira.
- Hoje é noite de lua cheia, amiga. Vou mostrar-te como é bonita a vida longe do expositor.
No caminho para casa a enfermeira-chefe joga fora o chapéu. Mais leve despe o casaco. E se tirasse a roupa, despida do uniforme que pautou sua vida, não seria isso a liberdade?
Canela tem vontade mas não se atreve. Deixa-se estar com a saia branca mofada. Quando chega à casa leva a mão companheira ao peito e pede carinhosamente que a ajude a despir-se. Sem vergonha, Canela explica que na sua idade o corpo não tem idade. A mão amiga então abre botão a botão da camisa. Devagar empurra a gola - o busto de Canela descobre-se. Sem cerimonia a mão – sempre agarrada à mão de Canela – acaricia-lhe a nuca. Como se conhecesse a viagem desce aos seios da mulher sem idade.
Chega a noite e Canela se deita. Na sua mão direita uma mão por companheira. Não interessa se é Maria ou João. Certamente importa que sabe dar um aperto de mão.

Canela, minha amiga, diga-me o que fará quando a mão sentir a falta do braço para dar um abraço?

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