Na escola era a melhor no ditado. Apesar de não saber gramática escrevia com predicado. Melhor aluna de português, sabia de cor os poetas - em português.
O destino (é uma coisa que dá sempre jeito) trocou-lhe o tempo do verbo. Seu bem amado fugiu e ela passou a viver no passado. Memória do dia em que ele a tinha beijado pela primeira vez. Da língua que se passeou no seu corpo. Daquela vontade quando a tomava em seus braços.
A saudade desse bem-querer fez dela escritora. Transformar o passado em presente é uma coisa que só a escrita consegue. O futuro correu em sentido contrário e se fez convidado confundindo o presente.
Pouco importa, ela agora era escritora. Verdade ou mentira, loucura ou sanidade são adjectivos que neste caso não encaixam.
- Espelho, espelho meu existe alguém que escreva melhor do que eu?
Do lado de lá o silêncio era a confirmação do novo talento nas artes escritas.
Os amigos apoiavam:
- Você devia publicar esses textos! São tão bons. Além disso há tanta porcaria que vai sendo publicada. De certeza que mal você se disponha, será um sucesso!
Negando a vida, seu ego brilhou. Não houve pastor que a contrariasse, a fé ressuscita os mortos. Dela vem a certeza da nossa existência. Neste caso, do seu sucesso no mercado editorial.
Antes de publicar, enviava seus textos a uma rede de amigos. Ansiosa esperava a resposta. Um elogio que confirmasse o que já sabia. Era uma escritora como nunca tinha havido na história.
Duvidava da capacidade de discernimento de um qualquer editor. Ainda para mais a lógica de mercado impunha os diários das garotas de programas. Ou os livros de auto-ajuda. Os de culinária também vendiam bem. Para não falar num corpo saudável de acordo com o tipo de sangue.
Poderia um editor de tanto entulho entender a sua literatura?
- Espelho, espelho meu haverá no mundo algum editor inteligente?
O silêncio desta vez não ajudava. O espelho parecia estar fora de prazo.
Um amigo do meio avisou:
- Nasceu uma editora que só aposta em novos talentos. Manda para lá os teus textos…
Desconfiada, encontrou o medo. E se afinal houvesse um engano. E se ela não era o que pensava ser?
A vida ensinara que a vaidade enganava. Lembrou-se da história " O rei vai nu". Seria a sua escrita afinal um streapteese de botequim?
Com tantos apelos, estava encurralada. Não tinha outra saída que não fosse enviar seus textos para a editora indicada.
A editora fez parceria com o espelho e remeteu-se ao silêncio. Estaria também fora de prazo?
Educadamente pediu confirmação da boa recepção da correspondência. Recebeu logo um sim. Assustada percebeu que seu nome era coisa desconhecida para quem respondia. Tratou-a como se fosse um homem. E informou-a:
"Caro,
Recebemos o seu e-mail, desculpe-me por não responder.
Ele foi passado para a produção editorial, se for aprovado entraremos em contato.
Atenciosamente
Editora"
Só teria direito a uma resposta se ela fosse um SIM?!
Um dia minha filha (uma menina de 4 anos) informou-me que no Centro de Saúde do nosso bairro, só aceitavam meninas que se chamassem Maria! Será que o editor passou sua infância no meu Centro de Saúde?
Era boa a resposta porque o silêncio, neste caso, se parecia com um NIN. Talvez eles não tivessem tido tempo de ler. Talvez os textos fossem tão bons que estavam a espera de uma hora mais acertada para o publicarem. Talvez a editora fosse composta de ignorantes que não distinguiam o feminino do masculino...
A dúvida crescia de dia para dia.
- Espelho, espelho meu que silêncio é o teu?
Com a fé abalada resolveu dar por terminada uma carreira que no passado se adivinhara tão promissora. Em tom de desfecho, escreveu para a editora:
Caro editor,
Já ensaiei a modéstia, depois timidamente cobrei a boa educação de uma resposta.
As notícias informam que este é o hábito dos tempos modernos. Epidémica é a distracção do gestor contemporâneo. Seja o negócio de parafusos, detergentes, medicamentos, sabonetes, livros e afins.
Hesitei entre enviar uma colecção de textos, aliás muito bem escritos, ou me masturbar com a prosa das Brumas de Avalon...
Mal por mal, venha o diabo e escolha!
Um abraço
E.
Não fosse a fuga do bem amado não teria ela sofrido com tanto predicado!
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