Augusto acordou com um peso estranho na cabeça. A noite tinha corrido sem tempo medido – escura. Melancólica. Nauseado levou a mão à boca numa tentativa frustrada para conter as tripas revoltas. Limpas as vísceras, resta um cheiro desobediente que invade toda existência. Se conseguisse lembrar como é a primavera talvez aliviasse este presente fétido. Há momentos em que a memória inventa o passado, traindo a verdade do sofrimento. Como inventar a dignidade se ela fugiu sem avisar da partida?·
Augusto forra o colchão com os últimos lençóis limpos. Um branco fingido veste a cama. Algumas nódoas fazem prova das noites descuidadas. Mesmo que tingisse de preto não conseguiria disfarçar o passado. E preto, nem pensar! Passaria a noite acordado com um medo de morte. Na mesa de cabeceira improvisada repousa um cinzeiro imundo. Nenhum candeeiro resistiu às quedas diárias. No tecto uma lâmpada mal ilumina o chão gasto, disfarçando a poeira acumulada de anos. Um móvel de estilo rococó, encontrado no lixo, arruma o que resta da vida deste homem cansado.·
Em pé recorda as noites felizes vividas naqueles lençóis. Uma lágrima tímida dança em seu rosto. Quem inventou que a felicidade não magoa? Assim são as tempestades, furacões, terramotos, tsunamis. Belos quadros recheados de dor.·
Deitado quer sonhar, ocupar o tempo que resta entre hoje e amanhã. De lado finge a natureza antes da infância. De longe ecoa a voz esperançada da mulher que o abriga:
- Quero que seja Augusto. Li no dicionário que significa grandioso; sumptuoso; respeitável; majestoso. O meu menino merece essa esperança...
Tão ingénuas as mães! Como se o nome ditasse a essência do ser.
Augusto lembra do rio que banhava o terreno da casa dos pais. Nem sempre acolhia o obstáculo. Às vezes sem força se dividia em dois. Tantas vezes Augusto fugiu da dor que foi se dividindo em pedaços cada vez mais fracos. Para respirar Augusto se apoia de uma bomba de ar.
De costas encontra o tecto. De bruços o cheiro das penas de um travesseiro antigo. Por mais voltas que dê Augusto está sempre entre quatro paredes.
Longe vai o tempo das caminhadas em Sintra. Qual era o caminho que o distanciava do abismo? Fosse ele qual fosse Augusto o desprezou.
Torturado leva a mão a cabeça. É aí que dói. Nesta ferida que não pára de abrir! Entretido Augusto pesquisa cada saliência. Um líquido desconhecido molha seus dedos. Em criança bastava o leite para alimentar a fome. Depois aprendeu a ler e saciou a curiosidade de outras vidas. Foi temperando o pensamento de condimentos sofisticados.
Talvez o corpo estivesse expulsando o excesso! Esperança de uma nova vida – que seja drenado pântano. Augusto procura seu canivete – presente da mulher que o amou um dia. Leva devagar, com cuidado a lâmina à ferida. Sem hesitar vai abrindo a cabeça como se construísse um caminho. Doía mas Augusto não sofria, tal era a esperança de um ser renovado. O sangue banhou a cama e Augusto achou que estava no leito de criança.
- Mamã ajuda-me a crescer...
Majestoso, Augusto partiu sem dizer adeus.
Sabedoras mães que sabem que cedo ou tarde seus filhos justificarão seu nome de baptismo
se a laranja for ácida e se a cada gomo as lágrimas te vierem aos olhos, me diga Cleo se é esse o paladar da loucura. Desenhos e textos de Ethel Feldman
17/08/2008
AUGUSTO
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