A dona Aurora era assim. Um erro no ditado – uma reguada acompanhada de um sorriso maldoso. Cansada respondi ao interrogatório. Mal via a hora de poder dar o nome da minha menina.
- Nome do pai...
- Desconhecido
Uma mulher cinzenta levanta a cara, baixa os óculos para a ponta do nariz. Com um sorriso auroriano, acrescenta:
- E a mãe – existe?
Nunca gostei de cartórios. São lugares escuros que cheiram a mofo. Na entrada um número sem fim de setas indicam os serviços. Perdidos, os utentes erram os guichés de atendimento. Após vários grunhidos, encontro a fila das certidões de nascimento.
- Nome da criança?
- Tenho aqui escrito, por favor leia:
“Me deixe inventar um nome. Moro na beira do rio. Deste lado conheço cada canto do mundo. Do outro vejo um horizonte sem fim. Se a senhora me deixar, a minha menina terá o nome da ponte que sempre sonhei.
Em criança encostava minhas mãos nos joelhos para deixar que meus companheiros saltassem por cima – eu era a passagem em cada risada.
Deste lado crescem as oliveiras. Do outro adivinho um pomar. Fiz um barco, mas o caminho é tão longo que tenho medo de afundar antes da outra margem alcançar. Se meus companheiros tivessem deixado crescer as pernas, todos juntos, curvados, teríamos aberto caminho. Mas cresci sem conseguir encontrar a forma.”
- Tem que prestar atenção! Veja só como coloca as vírgulas - separa sempre o sujeito do predicado. Depois de escrever tem que tirar uma folga do texto e voltar a ele para fazer revisão.
- Que ponha a vírgula o leitor onde lhe faltar a respiração…
- Nem falo na aparência. Acha isto aceitável?
- Mas a senhora leu. Posso inventar um nome?
- A lei protege as crianças de todos os estrangeirismos. Os nomes não se inventam...
- Antes que recuse, escute o resto, por favor. Se ela for Maria encontrará João do outro lado do rio. Juntos serão a ponte. Uma sombra protegerá os novos caminhantes. Quem teimar em atravessar o rio a nado poderá descansar um intervalo em cada pilar – o tempo de uma respiração. Quando o Norte se unir ao Sul...
O pó vai se acumulando nas mesas de cada funcionário. Na parede um relógio dita o fim do expediente. Uma mão malcriada fecha a boca da janela. Uma mulher cinzenta oferece-me as omoplatas.
Da janela do meu quarto cheiro o rio. Adivinho do outro lado um horizonte sem fim. Malgrado as vírgulas que esqueci, a minha menina será a ponte que eu não soube construir.
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