15/05/2006




A regra pariu a dor
porque o talento aprisionado
mofou na gaveta












Nada é verdade
E agora leitor, aqueles que me conhecem e se reconhecem no texto, que até já identificaram quem é este ou aquele – que se perdem na curiosidade das inconfidências escritas – relembro que nada é verdade.
Ontem na meditação senti o contorno da realidade. Nada é mentira.
Ana é redonda. Meu nome é outro. Não se lê como Ana – sempre a mesma seja no início ou no fim.
Aos 16 anos Ana apaixonou-se pelo dono da loja de motos da rua onde morava.
Por Zeca - Ana existia. Por ele valia a pena acordar.
Ana deixou de comer. Ana deixou de estudar. Bastava inspirar para sentir como Zeca respirava. De Zeca - Ana queria simplesmente o seu olhar.
Ana ama vezes sem conta. O brilho de seus olhos trespassa a alma. Prolonga cada sorriso. Faz do segundo a hora. Ana é capícua. Igual ao Universo sem começo nem fim.
Filha de comunistas. Neta de portugueses e judeus poloneses. A guerra marca o compasso do tempo dos avós. A hora é de luta para os jovens pais de Ana.
Um beijo, depois outro e Ana vira semente. No ventre da mãe se instala. Nasce em São Paulo no Verão de 1954.
Pouco sei de sua infância. Lembro dela a sonhar em hebraico. Fez o ensino primário numa escola judia.
Pais artistas. A moral ditava a regra que a arte não alimenta uma família.
O pai escondeu a caneta na gaveta, a mãe aposentou o piano. O equívoco fez -se dono e senhor. E assim os pais de Ana hipotecaram parte da vida.
Quanta ginástica fazemos quando nascemos! Choramos sem pudor para vencer a vida. Sem a moral a determinar se é em si bemol o tom deste cantar.
A regra pariu a dor porque o talento aprisionado mofou na gaveta.
Uma história de amor sustentou o ânimo da família. No intervalo quando a loucura saía solta o pai escrevia. A mãe ia se esquecendo. O piano saiu de casa virou alimento do clã.
Ana pouco falava do seu tempo de criança. Quando sorria distraída era porque viajava na memória. O pouco que sei presenciei numa festa de família por mero acaso.
Guardava em segredo as risadas como se pudesse perpetuar o momento.

Um dia Ana apareceu em minha casa. Sentou-se cansada. Triste murmurou:
- Meu tesouro foi roubado
- ...
- Meu pai, meus irmãos, minha mãe, o piano em Fortaleza, os discos partidos, as vergonhas, os medos, as risadas, a loucura desavergonhada, os filmes que vi as quarta-feiras no Império, Fernando Lemos, Sidónio Muralha, Noemio, os quadros feitos lombrigas na parede, minha avó Fany caindo no chão, o refúgio do meu avô Samuel, o armário de sala da casa do Bom Retiro, meus amores de infância, a festa da minha primeira menstruação, os abraços apertados, minha irmã nascida numa folha de alface, meu irmão de pulso cortado, meu irmão queimando a cabeça, minha irmã namorando sem freio, meu pai, minha mãe, meu avô Silva recitando a vida, minha avó Zulmira sempre em silêncio, Pierrot e Colombina, 25 de Abril, funerais, festas ....
-...
- Vou me esquecendo de tudo, não me esqueço de nada. QUE DOR!
- Calma Ana. Desculpa mas não percebo o que dizes
- Meu passado, minha família –hoje NADA
- ...
- Tens uma caixa dourada?
- Não
- Tens uma caixinha de joias?
- Só de comprimidos
- Serve. Vai buscar por favor
Pertubada vou ao quarto buscar a caixinha que me ofeceram na Farmácia. Está repleta de anti-depressivos.
Ana pede que eu limpe a caixa. Aproveito e jogo todos na sanita. Descarga com eles! Acaba-se a depressão.
Abre a caixa agora vazia. Uma lágrima escorrega em seu rosto pálido. Olha para mim
- Aqui guardo o pouco que resta. Segredos que a memória vai apagar. Misturado ao cheiro dos teus remédios - meu passado. Vai amiga guarda a caixinha, esconde no armário.
- Afinal o que houve Ana?
- A verdade
- Qual?
- Minha família
- Te amam
- Sim. Claro que sim
- Então
- Maltrataram-se no jogo da vida, hoje enveneraram as minhas lembranças. De repente, sem pudor apontaram-me o dedo e ... Sou responsável por todas as falhas.
- Como assim Ana?
- Não sei. Mas sou
A dor toma conta da face de Ana. Como se lhe parasse a digestão desmaia. A memória viaja para um lugar sem acesso deixando que Ana acorde feliz.
No armário das roupas velhas, mofadas tenho a caixinha de Ana. Não me atrevo a abri-la.
Assim amigos que me conhecem, se algum dos personagens são reais, me digam quais são, porque a parte que me cabe nesta história é pura invenção.

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