14/05/2006


Sabes quem sou? Eu não sei. Outrora, onde o nada foi, Fui o vassalo e o rei. É dupla a dor que me dói. Duas dores eu passei.
Fui tudo que pode haver. Ninguém me quis esmolar; E entre o pensar e o ser Senti a vida passar Como um rio sem correr.


(Fernando Pessoa)


Camaleão
-“Agora faz de conta que teu nome é outro. Como Maria vai ser fácil, fácil. Depois quando voltares a ser Ana já tudo passou” – diz Luisa.
No toca-discos Noel Rosa canta “quem acha vive se perdendo”
Aprendo rapidamente a estética, sou transformista – camaleão.
Dizem que é da primavera. A tristeza toma conta de cada sentido. Quando dói o peito e o ar se esconde não deixando respirar, o choro toma conta da palavra. Nada mais há a dizer.
Sufoco o grito. Se eu pudesse fotografava o nó que mora na minha garganta. Em preto e branco emolduraria o quadro para te mostrar David porque ainda não sei dançar.
Hoje nada faz parte deste livro. Hoje nada faz parte de nada.
Amanhã serei Maria, Joana, José. Hoje sou de novo passado.
Tudo é caminho. Cega não vejo a montanha. Me mostre amigo como faço para lá chegar.

A vida vestiu-se de freira. Manto preto, vidas proibidas, azedas. Na mão direita uma cruz - Jesus castigado. No olhar a censura a vaticinar o futuro:
- Ainda te falta sofrer. A tua vida foi toda um pecado... Não te iludas no prazer. Ele só existe para sentires como doi a seguir. Tua vida... Vá de Retro Satanás!
Estive com ela hoje vestida de homem. Alguns tantos a gritarem em coro:
-Vai pecadora! Ris-te de quê?
Nada me assusta por isso gargalho. Na banheira coloco os frutos que deviam ser para o chá. Nela me banho, nela me bebo.
- Vai pecadora...Sofre!
Se a minha cara for de dor continuarei a sorrir. Se o meu passo for trocado tentarei como me for possivel caminhar. Que venham as freirinhas vestidas de urubus, a cruz, o pecador...
Exorcizo a ferida. Na parede o nó que saiu da garganta. Meu nome é Ana.
O horizonte está coberto de neve.


Será que posso apresentar Lao-Tsé a Allende em Vuelvo a Sur? Nesse mundo de lá para onde partiram será que vivem todos juntos em santa comunhão?
E se eu inventar que mal haverá em iniciar Allende na prática do Tao?
Erámos uns poucos a gritar “o povo unido jamais será vencido”- ninguém me contou quanta ansia de poder se escondia por trás de alguns.
Com fé enchia meus pulmões, dobrava a mão e com punho erguido anunciava que o pão, a paz, a educação era de todos um direito.
Se eu fosse uma gueixa, curvada pediria a Lao Tse que ensinasse a Allende o Tao.
Prometi a Cleo que iria rever o texto. Parece que apesar da ficção me acusa de um tom confessional.
- Aborde os personagens de outra forma
Irritada digo que não. Que devo inventar que a vida não tenha mostrado antes?
David me alerta:
-Vais magoar muitos de nossos amigos que vão se sentir expostos no teu texto
Por mais que invente a verdade está lá latente à espreita. Por mais que troque os nomes todos somos José; Maria, João. Cleo é David. David e Gabriel o amor que desejo. Miguel a miragem de liberdade. Afinal somos todos. Como fugir do esboço de vida que desenho em cada parágrafo?
“Sabes quem sou? Eu não sei”
Diga Cleo. Explique que você se deita e deleita como Valentina na história de Ó.
Mas afinal quem é você?
Será David transfigurado de mulher? Desejo a consumir a paz de cada dia. A culpa, o remorso depois do acto de amar?
Quem é você amiga? Por vezes Justine, dengosa – gostosa. Sempre feliz até quando peca.
Será você a mutante. Mistura de homem e mulher. Diga que sim!
Você é a minha vontade de ser. Homem ou mulher.
Em Vuelvo a Sur você vai libertar com David a cor do mar.
Cléo você só existe enquanto a mistura de um pouco de todos nós.
Miguel partiu. Na face o sorriso de quem sente o rio a correr.
Vou enviar a Justine o esboço que já tenho escrito. Será que ela no prazer da floresta se entusiasma e me lê?

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