15/05/2006



Converso com a preguiça
tento convence-la a passear-se
pela praia – sozinha

Vuelvo ao Sur again
Hoje o vento está de norte. Talvez me inspire. Tantos dias parada, tantas horas sem fazer nada. Decorei a sala com todas as resmas de Luisa. No canto esquerdo larguei umas cinquenta meio amassadas a traduzirem trabalho. No lado direito ficou o resto, feito um jogo a compor uma torre. Essas lembram quanto falta escrever. De repente o que era prazer, virou disciplina. Alguém virá cobrar mais tarde trabalho. Por isso antes que me envergonhe e seja obrigada a mentir, preparo a sala. Keith Jarret será a música de fundo, um chá de Roibos, o alimento que limpa. Por fim converso com a preguiça e tento convence-la a passear-se pela praia – sozinha.
Na mesa redonda, abro o computador. Volto a Vuelvo ao Sur.
A parte que nos cabe
Gorba está atrasado. Nossas mulheres deixaram de menstruar quando atravessaram a portagem de 2000. Todas secas.
Fabricamos nossos filhos em laboratórios muçulmanos. Osama tomou conta da nossa genética. Enquanto o imbecil de Dario tem o falo do tamanho de um boi, Osama produz meninos.
Vou ao lar dos Velhinhos de Maio. São os resistentes que restam do Maio de 68. Mario vai me ajudar na sessão. A volta de uma mesa invoco Allende. Precisamos que nos ajude a lembrar o caminho. Por cada portagem que passamos perdemos um pouco da nossa memória. Fica dificil recordar o passado. Esqueci como é o cheiro da terra lavrada. Nossos mortos habitam o ar nas lixeiras limitrofes da cidades. No ar a gordura dos hamburguers.
Allende vem de um ano que já não reconheço. Nos conta como os mestres do poder nos desviaram as estradas.
Pouca gente se lembra do campo, ninguém mais sabe qual o atalho.
Esta é a parte que me cabe na história – lembrar.
- Cleo?
- Diga minha linda, conte coisas
- Queria a escrita com som. Quando você soletrasse cada palavra seria como o esboço de uma canção. Se fosse Justine a dizer ‘desejo’ ... Imagine Cleo qual o compasso de Justine
- Minha louca adorada
- E se fosse um gesto? Justine se enrolaria como uma serpente

Sorri. Cleo volta a fugir. Na frente do computador se revê.
Hoje nada me motiva para a escrita
- Cleo e se fosse o David a murmurar desejo?
- Não sei Aninha... só um minutinho
Cleo ama G. Abraça o terminal. Numa dimensão desconhecida, Cleo se entrega.
Não desisto. Insisto.
- Cleo se fosse o David a dizer ‘desejo’, ele te pediria para dançar em pijama... Aquele azul e vermellho aos quadradinhos
Desespero. Minha amiga viaja. Já não está comigo nem em Lisboa, nem em São Tomé. Noutra vida Valentina. Hoje heroína virtual
- Cleo?
-Hm, hm....
Subo ao primeiro andar. Deixo passar um minuto e desligo o modem. Mato esse planeta invasor, que me rouba a amiga.
- PORRA!
- Cleo o que foi?
- PORRA! E agora Ana?
- Cante DESEJO. Cuidado – não desafine
- ANA
- Agora não posso
- O que você está fazendo?
- Vuelvo ao Sur...
- Largue isso agora
- Desculpe amiga este é agora o meu vício. Cleo e se as letras fossem notas?
- Vamos ao Guincho? Você quer chamar o David?
- Só se você for de pijama...
- AH que saco! Esqueça
Cleo desespera sentada. Tantas vezes subimos o Chiado, tantas promessas de festa. O telefone toca. Cleo vive no espaço sideral.
Fujo do livro. Qual o fio condutor desta história?
Bem me quer, mal me quer... Gabriel onde fica o luar?
Cleo vai ao cinema. Na mesa, ao lado do computador, deixa um bilhete:
Ana te amo. Quando voltar te levo para São Tomé. Lá seremos felizes...
No bilhete de Cleo, neste papel amarrotado o recado que só nós duas entendemos. Memória teimosa que me invade.
Em apenas duas semanas, tudo mudou. Depois de um ano separada resolvi visitar Cleo em São Tomé. Em Junho do ano passado.
Calor que envolve meu corpo. Me toco. Recordo.
Assim que cheguei a doença tomou conta de mim. A ilha é suada. No ar o desejo está latente. Tão violento que doi. Invade o sexo no nosso descanso. Não há toque solitário que dê resposta ao anseio doutro tocar. Se o encontro não acontece adoecemos. Somos tomadas de uma febre fatal.
Em São Tomé a solidão é castigada como se fosse um pecado. A natureza implacável condena quem desiste de amar.
Fazer amor nesta ilha é como a onda salgada que se encontra na areia. Sempre as partes compondo a unidade.
Quando Gabriel saiu de casa fechei meu corpo. Na ilha sem entender como nem porque o desejo instalou-se.
Onde partilhar essa vontade de vida que se apoderava de cada um dos meus sentidos?
Na rua, no bar, em cada esquina, um sorriso rasgado oferecendo nova existência.
- Como faço Cleo, o que faço?
- Viva Ana, viva
Tinha a insegurança por companheira. Má conselheira arrastou-me para caminhos escuros.
Neste calor húmido o meu sexo latejou de dor – sozinho!
Antes do regresso, a meio do caminho, a febre apareceu – quase morri.
Nos meus delírios escrevi:

FEBRES DE SÃO TOMÉ - Junho 2005
1
Veio do mar aquele que um dia roubou um pedaço de mim. Parti sem saber meu destino.
- Dona este é o caminho da Boa Morte
- E depois sr Manuel?
- Dona depois é o cemitério de São João
- Me deixe ficar por aqui Manuel, se boa é a morte
- Dona o doutor vai saber que malária é essa que lhe morde a alma
Entre o hospital da cidade de São Tomé e a casa de Daio não sei o que aconteceu. Ouvi o médico cubano segredar que o meu mal só ocupava lugar. Na esquina da dor quase atravessei a morte. Veio do mar quem me roubou existir.
Encarregaram a Daio o meu destino.

2
Na ilha, na casa de Jesus Nosso Senhor há uma porta de entrada e outra de saída. Tão perto uma da outra – por vezes quem entra esbarra em quem sai. Entrei na casa de Deus - saí em busca de um atalho.
As estradas de São Tomé apodrecem – o alcatrão luta contra os buracos.
- Dona – cuidado! Maria deitou-se com José, veja só o pecado...
Quem me mandou sair do santuário?
- Se aquiete homem, também me deito com Cristo e ninguém me leva ao inferno...
- Dona – cuidado!
As estradas de São Tomé morrem devagar – preguiçosas.

3
Desço a rua do Quilombo, viro a direita passo o Papa-Figo, para trás um horizonte perdido. Na minha frente o mar. Daio está no Passante
- Branca, branca....
Queria que minha a cor fosse como a de Daio – negra.
- Branca, branca...

4
Procurei em Daio meu amor perdido noutra ilha. Outro tempo. Deixei que a dorencontrasse no meu corpo abrigo. Alma retalhada tamanho foi o estrago. Vi amalária matar os corpos jovens de São Tomé. Tantos brancos ousaram inventara sina daqueles que a cor ditou a dor. A branca histérica pregou que o racismo não existe. O preto desviou o olhar - sofreu em silêncio.
- Dona fique por cá...
Os olhos de Daio não mentem. Vejo nele a memória do seu povo. Cada grito calado, cada lágrima contida. Um dia matam todos os africanos.
Quero de Daio a revolta escondida. Lamento constante. Resistencia passiva.
- Dona fique por cá...
Quis de Daio cada carinho roubado. Daio triste olhou o vazio. Procurei uma chama, calor de um tempo passado. Daio triste olhou o vazio.
- Dona fique por cá...
E o que tem essa ilha perdida para além das tristezas vividas?
Não tem passado. Minha geografia – o vazio.
No regresso a casa. Lisboa quero-te de novo vestida de véu e grinalda!
Mostra-me que também aqui é possivel amar.
Tenho sono. Saudades de São Tomé.
Diz-me Cleo se o teu planeta é melhor do que este que destruímos com tanta pressa?.

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