11/01/2014

amendoeira em flor

Francisco morreu numa tarde de sol. Na manhã seguinte, Mira pediu-me que tirasse os lençóis do seu enxoval que estavam na última gaveta da cómoda.
- Vê se estão os sete jogos completos...
Quando abri a gaveta, um cheiro intenso de naftalina invadiu o quarto.
- Parece que nunca foram usados, Mira.
- Foram usados uma única vez. O último foi o da nossa primeira noite, até ao primeiro que celebrou o início da nossa vida de casados. Cobre o espelho do corredor e o da casa de banho com as rendas de sal. Faz-me um chá de perpetuas roxas e outro de jasmim e deixa-os repousar. Traz-me o castiçal e as velas. Os fósforos são os que estão na gaveta do móvel da sala.
Durante sete noites, Mira deitou-se num novo lençol e recordou como o corpo gosta de ser amado.
Ao oitavo dia, desfez a cama e com uma tesoura de costura picotou-os pacientemente em dezenas de pequenos retalhos. As noites seguintes foram passadas a casá-los.
- Esta é manta que me vai vestir quando eu partir. O ciclo estará completo.
Mira e Francisco vieram viver para a serra, quando se reformaram. Francisco diz que aqui o tempo é como a sua velhice: molengo.
Acorda às seis da manhã com a ajuda da bicharada - um relógio que nunca se atrasa.
Ninguém se aborrece com os seus passos lentos. A caminhada que outrora fazia em dez minutos demora agora uma hora. Francisco diz que assim pode descansar o olhar no
no sabiá que namora. O amor é sereno. Preguiçoso deixa-se estar feliz com o beijo que não se esquece de abraçar.
A fome é tão reduzida quanto o sono. O mundo fica maior dando a real dimensão do mistério da existência.
Aos fins de semana, Joana visita-os com os netos, antes que eles cresçam e percam a vontade de não de terem pressa. Ana aprende a fazer a tarte de maçã com passas que a avó de Mira ensinou-lhe quando era criança. José sobe na oliveira e diz que do último galho, consegue ver onde acaba o mundo.
Quando a noite chega, Francisco conversa em silêncio com cada estrela. Mira senta-se a seu lado e faz escalas numa caixa de madeira velha.
O corpo acomoda o compasso e relaxa. Aprende a gostar da demora e da palavra devagar. Saboreia-a como se a soletrasse. Cada sílaba pronunciada por dentro com tempo de se fazer acompanhar sem que seja atropelada na língua.
- Avó, o galo canta e o gato reclama!
- Conversas de bichos, Ana.
- Avó, olha o Tareco no ombro do avô!
- O Tareco sabe que já foi pássaro. De vez em quando descansa no ombro do avô, porque o conheceu quando ele era uma amendoeira.
Com os olhos muito abertos Ana desata-se a rir.
- O avô foi uma amendoeira!
Um dia o sol aqueceu o corpo de Francisco e convidou-o a partir. Antes, deixou que ele descansasse o olhar onde a sua vista pudesse alcançar. Então ele viu, sem precisar de subir à oliveira, onde acaba e começa o mundo.

No fim da serra há uma amendoeira que tem sempre flor.

Sem comentários:

Enviar um comentário