15/02/2013

sopro


Ela vinha do lado de lá, de onde o universo determina a vida. Tinha a mesma cor desbotada dos outros fieis, um sorriso aprendido desde criança.
Um dia perdeu-se. Atravessou a rua, esqueceu o caminho que tinha feito. Assustada, viu a memória despedir-se de uma forma malcriada, sem avisar que partia. Antes de esquecer quem era, guardou o seu primeiro nome e o ensinamento da avó:
- Roberta, quando te perderes não olhes para trás, nem para o lado. Segue e não pares. O caminho é sempre em frente.
Já passava da meia-noite, quando vi Roberta sentada no banco da paragem de autocarro. Apática, dizia a tudo que sim. Era quase criança, era quase mulher. Olhos pretos que de vez quando diziam vida, mas na maior parte do tempo distantes, como se o mundo existisse somente para lá do horizonte.
Perguntei o que fazia ali. Respondeu-me que não sabia. Devia estar perdida. Pedi-lhe que tivesse calma, olhou-me espantada, sem entender.
- Como te chamas?
Com medo respondeu que não tinha certeza.
- Acho que deve ser Roberta. Pelo menos é o único nome que ainda sei.
- Não te lembras como chegaste aqui?
- Devo ter pedido ao universo...
- A quem, Roberta?
- Ao universo.
Lembrei-me de alguns amigos que diriam o mesmo:
- “ Confia que o universo providencia... “
Nunca entendi o sentido, mas agora era-me suficiente a explicação de Roberta.
Estava frio e a menina tremia, tinha atravessado a fronteira do lugar onde vivia seguindo em frente. Quando o corpo acusou cansaço Roberta parou.
-Vem comigo. tomas um banho quente e descansas
Em casa, encontrou o caminho do quarto. Olhou-me em silencio e deitou-se.
As mudanças ganham a rotina num abrir e fechar de olhos. É dificil dizer em que momento Roberta passou a fazer parte do meu dia. Sei que aconteceu, sem que eu desse conta. Talvez na manhã seguinte à sua chegada, quando levei-a comigo a comprar o pão, ou quando sentámos no café e ela pediu uma torrada e espantada perguntou-me:
- Quem pediu que estivessemos aqui, tu ou eu?
- Quem pediu a quem, Roberta?
- Ao universo, porque ele atende todos os nossos pedidos, mesmo aqueles que nem sabemos ter pedido.
Pousei a minha torrada e pensei em todos aqueles que vivem na rua com fome e perguntei-me que desejo tamanho seria o deles para que o universo os tivesse assim atendido. Senti um calafrio na espinha e o medo do passado visitar-me. Em criança, de cada vez que pensava, pedia desculpas a Deus e benzia-me antes que ele me castigasse. Não havia segredo em meu corpo que não Deus não soubesse. Vulnerável, aprendi a pedir desculpas ao mundo por tudo o que eu poderia ser, mesmo antes de ser.
- Não importa quem pediu, Roberta.
- Cuidado com o que pedes, Carla. As coisas que a minha avó dizia, são as únicas que me lembro. E essa é uma delas. Cuidado com o que pedes...
A ameaça permanente dos nossos desejos transformados em pecados, sujeitos a um castigo divino, está enraizada em mim. Feito criança desafio o universo:
- Quero um homem que me aqueça os pés na cama, mas que antes e depois soletre que me ama...
Enquanto ouso, sinto meu corpo que treme...
- Isso não é um pedido, Carla. Tens de ser razoável. Isso é o mesmo que pedires para ganhar na loteria!
Assim eram as nossas manhãs. Depois do café, um passeio ao mercado. Frutas e legumes frescos para o almoço. Um dia, Roberta corou, agarrou-me a mão e apontou para a banca das romãs.
- A minha mãe gostava dessa fruta...
- Romãs?
- Sim, Carla. As romãs...
Roberta recordava-se, só ficando na penumbra o dia em que se perdeu.
- Conta-me como era o lugar onde nasceste...
- Somos pessoas pacatas que confiam que tudo acontece porque tem de acontecer. Não nos preocupamos em procurar explicações. Elas existem por si. A vida é assim, Carla.
Estas conversas levavam-me sempre à infância. A minha prima velhota, beata, que me obrigava a rezar o terço todas as noites. Ave Maria, cheia de graça e a falta de ar a acompanhar o meu cansaço até que o terço fosse rezado.
Roberta voltou a estudar. Fez amigos, apaixonou-se, chorou e riu como todas a mulheres da sua idade. De vez em quando apanhava-a a olhar-se ao espelho. De lado, como se conferisse a silhueta elegante. De costas, torcendo a cabeça, tentando adivinhar as nádegas. De frente, esticava o queixo e investigava a face. Um dia, entre o espelho e a pressa de sair, disse-me:
- Devia ter dito à minha avó, que quando nos perdemos antes de seguir, paramos e depois escolhemos o caminho que o coração indica.
- E o universo?

- Não sei, Carla. Lembras quando te contei que o filho do Tiago, o André começou a andar?
- Sim
- Levantou-se, parou, sentiu o chão e esperou. Colocou uma perna à frente, procurou o equilíbrio e em seguida levantou a outra. De repente, numa pressa descontrolada, andou e caiu. Olhou surpreso para o chão, como se avaliasse a queda. Levantou-se e andou. O que o movia, para além da curiosidade, Carla era uma confiança extrema...
- Quando aprendi a andar de bicicleta, tinha oito anos. Estava a viver com meus avós. Fomos passar um fim de semana na quinta do primo Leal e eu era a única criança que não sabia andar de bicicleta. Disseram-me que nenhuma bicicleta tinha rodinhas de apoio, mas que eu poderia experimentar assim mesmo. Sempre senti vergonha de dizer que tinha medo, confirmei logo que iria tentar. Distanciei-me e fui para um monte onde ninguém me visse. Escolhi uma ladeira e sentei-me na bicicleta. Coloquei os dois pés nos pedais e rolei ribanceira abaixo.
Lembro da minha vergonha doer mais que as feridas que fiz nas pernas e o espanto da minha avó. Até hoje pergunto-me porque escolho sempre o caminho mais próximo do abismo.
- Depois continuamos, Carla. Tenho de ir, estou atrasada.
Roberta casou e emigrou com o marido e os filhos para um lugar onde não consigo ir. Um oceano nos separa. Não há pontes que me facilitem a travessia.
Uma dor antiga encontrou espaço no meu corpo e acomodou-se. Jurou-me fidelidade. Tento entender o vazio que sinto mesmo junto ao coração. Ele tem o tamanho do mundo, é redondo e sem cor. Aperta como se de mim quisesse uma resposta que desconheço.
Tinha 10 anos quando me atiraram à piscina desprevenida para aprender a nadar.
- Levanta os braços! Cuidado porque se engoles água, afogas-te.
Ainda hoje falta-me o ar.

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