23/09/2006

SETEMBRO

Augusto
Augusto lembra do nascimento de outro filho. Entrou na praça a cavalo, sacou do revólver e gritou:
- Hoje pago todas as bebidas. Que o povo comemore porque nasceu meu filho varão!
Outro tempo. Terra batida. Poeira que se entranha no corpo quando respira. No canto direito - um banco de um homem só. Tem no bolso a miséria de toda uma aldeia. Ao lado a igreja do padre Ernesto. No centro da praça uma homenagem à branca de neve e seus sete anões. Ninguém sabe de onde veio a estátua da menina encantada.
Contornando o banco, virando à direita, no fundo da rua, dona Aurora recruta as meninas desencantadas da vida. Promessa de noites molhadas. Aurora, a puta sem idade, faz do prazer dos outros a garantia do seu almoço.
A morte vai apagando a vida. Na terra o suor de uma colheita perdida.
- Filhos já pari vinte… Será que o teu Maria, vai vingar?
Augusto vai povoando o ventre das mulheres que ama, na esperança de vencer o destino dessa terra maldita. Nas ruas os porcos comem as promissórias vencidas. Matar o bicho, dar de comer a fome.
- Onde está a mãe desse porco? Falta cria para matar este!
Duas semanas não chegaram para o varão sentir a dor da vida. A morte vinga o desejo de Augusto.
- Maria! Onde está essa mãe desnaturada?
Dói o peito de Augusto. Tira do bolso uma carteira curtida. Falta dinheiro sobram documentos. O bilhete de identidade diz que Augusto existe.
- Quero um papel a dizer que estou morto! Acompanho meus filhos. Nados-mortos. Padre, diga ao povo que beba na praça, se enrole com Aurora, comemore a minha partida.
Augusto desapareceu nessa noite. Teria morrido?
- Eufrásio faça a certidão de óbito. Augusto deixou de existir.
Maria viúva volta a casar. António invade seu sexo. No ventre a promessa de mais um filho.
Augusto leva nas costas a vontade do mar. Tanto chorou que se acostumou ao sal de suas lágrimas. Quer seu corpo mergulhado no oceano e expulsar o passado.
Escolheu por caminho o poente. Dias, meses, anos foi esse o tempo que Augusto levou para encontrar Setembro.
Petrónio nasceu. Augusto lembra a dor de cada filho perdido. João se relembra padre. Quem vive recorda a vontade de esquecer o passado.
Setembro não tem branca de neve. Setembro viveu sem igreja. Nenhuma Aurora cobra os fluidos do corpo. Setembro namora sem compromisso de futuro.
- Tudo de novo João?
- Descansa mestre que em Setembro é diferente. O povo vai fazer uma igreja só para comemorar em comunhão o nascimento dos seus filhos…
- chorar seus mortos
- rezar pelo futuro de quem vive
- NÂO! Não tentes ressuscitar feito Jesus na cruz. Não amigo. Não caias em tentação
- Mas Petrónio nasceu na véspera de Setembro,,, Uma força maior diz que isso é presságio …
- coincidência
- isso não existe Augusto. Nada existe ao acaso
- nosso corpo traz a memória de uma vida passada que eu tinha por enterrada. Apagada
- Hoje nasceu Perónio teu filho. É dia de festa
- Hoje nasceu a lembrança daqueles que não vingaram a morte. De uma Aurora agiota do sexo. Hoje Maria, viúva sem morto, ressuscita a dor da perda. Hoje vi no mar meu reflexo, feito um espelho do que sou. Voltei a chorar. Onde antes era paz, hoje é o medo instalado do futuro que conheci no passado. Tudo mudou num intervalo que deveria ter sido eterno. JOÃO NÃO RESSUCITES O MENINO NA CRUZ!
- Trago comigo a bebida que abençoa a noite do primeiro nascido em Setembro. Cura a ressaca da ausência do álcool. Embebeda–te mestre Augusto. Não te esqueças de primeiro oferecer ao santo. Pede a deusa que mora no mar que permaneça nestas águas ameaçando a ilusão do prazer eterno
- Daqui a duas semanas voltamos a falar. Nessa hora João, se voltares a padre te peço a bênção da vida ou da morte. Hoje me calo. Suspendo o ar que percorre meu corpo até o dia 15 de Setembro. Vai João volta à praça. Não contes a ninguém que me viste. Deixa-me esperar. `
- Abraça-me então mestre. Porque do peito vem uma dor que conheço. Abraça-me Augusto como se fosse a primeira festa dos desgarrados.
João se aconchega nos braços do mestre. No peito o coração agitado no compasso do seu.
Setembro inventou a eternidade. Até quando?

A vida
Setembro anoitece sempre à mesma hora. Depois do peixe enredado o sol se despede. Nunca se atrasa. Nunca se antecipa. Os membros endurecidos anunciam o fim do dia. É hora de amar. No corpo o sal engrossa a pele daqueles que vivem no mar. Como um relógio correm para casa debaixo da ordem de um membro independente. Depois do amor despem as camisas suadas. Cansados perguntam pela comida.
Um dia nascerá o fruto dos suores trocados. Conta Setembro que amar é bom com quem gosta de ser gostado.
Quem alcançou Setembro matou a sede do passado. A primeira água que o corpo recebeu. Devagar. Cristalina, fresca encontrou o caminho da alma. As mortes vividas foram esquecidas. Se Cristo ressuscitou a dor. Setembro fez dela receita para a vida.
Bem abençoado quem nasceu, sofreu no parto a primeira dor da existência.
Do sangue materno a promessa de cor. No primeiro choro a certeza do riso. Cada desgarrado trouxe no rosto a marca do sofrimento. Em Setembro fez dela o desenho da felicidade. Em cada homem o universo se exibe inteiro. Em Setembro se ama como o mar quando se espreguiça na areia.
Quando Petrónio nasceu Augusto lembrou-se de seu pai. Jardineiro nas três casas grandes da aldeia. De tarde Mourão endireitava o tronco, guardava as ferramentas. Soltava um breve ‘ai’. Seis da tarde a noite ainda tímida lembrava a família. No caminho de casa uma garagem guardava aguardente de cana. Lá os amigos bebiam até que o corpo todo ardesse. As oito Augusto a mando da mãe ia buscar seu pai antes que esquecido da vida adormecesse em cima da mesa.
- Pai a mãe tem o peixe na mesa
Mourão acordava sem pressa, dava uma volta inteira ao pescoço. No queixo a mão suportava o peso da vida.
- Já vou filho. Já vou.
O tempo passava sem hora marcada. A conta dos copos bebidos somava um total sem prova dos nove. Mourão, pai de Augusto, só contava um mais um.
- Pai bebeste dez copos! O tamanho da garrafa de leite que dorme na prateleira da nossa despensa.
Petronio nasceu na véspera. Augusto queria o pai a somar a felicidade que parece escapar de Setembro. Memória esquecida agora saudade.
Perto da morte Mourão delirava lembrando seu pai.
- Um dia eu vi o mar. Meu pai agarrou na minha mão e em silêncio caminhámos horas. Na estrada vi um anão que cantava o amor nunca cumprido. Meu pai tapou meus olhos e pediu a Deus que a loucura nunca me visitasse. Não me lembro quando o mar se atravessou no nosso caminho. Só sei dele no meu corpo aliviando o cansaço…
- Mas pai nunca viste o mar!
- Meu pai João dizia que eu era Mourão porque sim
A cada dia uma nova verdade a dar conta da mentira diária. Pouco tempo depois Mourão se foi. Na campa Augusto desenhou: Aqui jaz Mourão filho de João.
Augusto relembra um passado há muito enterrado. Petrónio vingou a vontade de Augusto ser pai. Nada vem de graça. O menino devolveu a memória aos desgarrados.

Outono
No primeiro dia do mês de Setembro, no segundo dia de vida de Petrónio, apareceu pela primeira vez o Outono em Setembro. A manhã fez-se preguiçosa. Trouxe uma cor nunca vista à aldeia. Uma chuva tímida anunciou a primeira estação. Surpresos os moradores vieram para a rua. Teo ainda perguntou a Virgínia se ela via o mesmo que ele. Virgínia que nunca soube fazer uso da palavra pois seu corpo contava o verbo que lhe faltava, agarrou na mão de Teo e fê-la deslizar por seus braços desnudos Tão molhados! Abrigado numa alcofa improvisada Petronio sintonizado com a natureza chorava.
João agora padre confesso rezava a Deus pela oferta da mudança de tempo. Tudo voltava ao normal. O dia amanhecia mais tarde, a noite aparecia mais cedo. Quem pescava tinha de se sintonizar com o sol para aprender a sair na hora certa da pescaria.
Um ano tem quatro estações! O dia - vinte e quatro horas. Num lugar sem idade onde o velho era velho apenas, como repartir o dia?
O leite era de quem tivesse sede. Com a chegada do tempo medido, a garrafa passou a ter dono. O litro passou a ser dividido como o tempo daquele novo presente.
João sonhava com um sino numa igreja a badalar de hora em hora. Em cada casa um relógio a marcar a hora do regresso a casa.
A criança chorava em horas marcadas. De duas em duas horas pedia o peito da mãe. Quando cada coisa tem um tempo acordado, nasce a pressa do tempo esgotado.
No primeiro dia do mês de Setembro a memória aflorou a lembrar o engano de quem fugiu de um tempo apertado. Como recusar o que o corpo sem dono expressa?
Pouco a pouco, mais depressa que nunca Setembro se organizava. A ordem tomava conta de cada esquina. Sem demora em cada casa uma nova rotina. Igual aos lugares da partida.
Na cama as mulheres passaram a fazer contas. Depois da menstruação o amor passou a ter dia marcado para a procriação.
Nos outros dias – descansavam. Os intervalos ganharam o enfado. Com afinco num prazer tornado trabalho abriam as pernas à espera do esperma.
E se a vizinha achava que estava de esperanças raivosas as outras rogavam pragas aos maridos incapazes. Veio o esquecimento do tempo sem pressa. Essa memória levou Augusto quando assustado pressentiu a dor.
Não foram precisas duas semanas para Augusto decidir seguir caminho.
Sem ver o filho tantas vezes desejado Augusto partiu sem deixar rastro.
Maravilha viúva sem morto para enterrar pediu a João um manto preto que desse bem conta da sua dor.
Petrónio foi o primeiro menino sem pai. No seu corpo a memória de um Setembro um dia prometido.

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