28/08/2006

Tudo mudou


Tudo afinal muda. Criança Canela rouba a goiaba da vizinha sempre que a fruta se coloca a jeito de ser colhida. Verdes ou maduras sempre vermelhas por dentro. Cada semente prometendo mais um fruto adiante.
Na panela sua mãe faz da fruta sobremesa. Na mesa quando o queijo se faz companheiro da goiabada completa-se o ciclo da vida.
De manhã as vizinhas despedem-se de seus homens que partem em busca de boa pescaria. Quase às cinco da tarde voltam a praia para dar as boas vindas aos companheiros que todos os dias fazem da vida uma despedida.
- Eh, oh…
Uma fila de braços cantam
- Eh, ôooooooooooooooo
- Cuidado Canela! A rede corta…
Alguns peixes ainda saltam em busca do mar até sufocarem de ar.
- Augusto? Larga os que lutam …
- Canela! Olha a rede que corta! Mulher esses que lutam são o nosso jantar
- Ehhhh, ôoooooooooooooo
Em Setembro as ruas são feitas dos caminhos que os pescadores vão construindo todos os dias. Os mais atravessados já tem a poeira acamada. Pouco chove na terra de Canela. Nesse lugar que nasceu com nome de mês o tempo tem tempo de ser.
- Canela! A dona Mariana diz que você se perde no caminho para a escola…
- Mamã desculpa. Sempre encontro um caminho novo…
- Sempre distraída!
Canela cresceu assim. Às vezes encosta a cabeça ao ombro para descansar. Nesse momento, que com o correr dos tempos Canela apelidou de intervalo, vive noutro paralelo. Em cada intervalo, que a mãe apelida de distracção, uma nova descoberta.
Na escola cantam o alfabeto. Cada letra acompanhada uma nova palavra. Assim Canela vai conjugando o verbo. Quando dona Mariana aponta o dedo Canela se apressa e soletra orgulhosa:
- Eu SOU! E se dois mais dois são quatro já tenho prato!
- Canela… acrescentas sempre o desnecessário. Ias tão bem! Que distraída!
Canela encolhida sorri. Acha tão bonita a rima e não se importa se ela tem nexo. Afinal que importa se o prato não vem de um quatro? O r se troca, o t se confunde com o ‘o’, e a boca saliva feliz. É disso que se trata.
Em Setembro, naquele tempo, todas as famílias eram vizinhas. Seu Francisco, dona Emília, o mestre Augusto e sua mulher Maravilha eram os mais próximos da casa de Canela. Do lado direito Emília e Francisco tentavam filhos. Do lado esquerdo Petronio fazia a felicidade de Maravilha e Augusto.
Teo casou com Virgínia. Na travessia nasceu Canela. Menina pequena, tão desenxabida que Teo apelou ao aroma do nome para matizar a filha.
- A menina será Canela! Vai temperar a vida, seja ela bonita ou feia
- Teo, convide a vizinhança. Faça pastéis de nata, tempere todos eles com muita canela. Dê a quem queira, o sabor doce da nossa filha que agora nasce. Festeje com o povo na rua. Enfeite a jangada. Doe a Iracema todo seu amor, mas não se enfeite com ela! Confira com o Padre João se baptiza sem Missa. Que abençoe Canela, mas proíba qualquer oração a Jesus. Vá Teo apresse a festa. Qualquer hora te alcanço
- Quando?
- Quando a hora for hora de estar presente
As crianças de Setembro já sabem quando vai haver festa. As mulheres pintam os lábios, tiram do armário um vestido decotado sugerindo seus seios partilhados por todas crianças da aldeia. Os homens descobrem o rosto escondido pela barba nunca feita. E a bebida se espalha generosamente entre as gargalhadas das anedotas repetidas.
Na cozinha Felícia, mãe de Virgínia, envolve o fundo da panela com tomates, cebolas, pimentos, muito alho e malagueta. O peixe abusado de tanta coragem mergulha no tacho. Setembro comemora Canela. Um pedaço de gente que promete temperar a vida, seja ela feia ou bonita.
Com um vestidinho de cambraia cor-de-rosa e os pezinhos nus Canela se apresenta na praia. Em vez de chorar - sorri timidamente. Para surpresa de todos vira o pescoço para direita e a seguir para a esquerda. Movimenta os olhos como se procurasse focar. Este movimento seguirá Canela pela vida fora.
Festa de arromba pede um feriado. Merecido o descanso para quem se perdeu na areia toda noite a dançar.
Setembro dorme todos os anos no dia 27 de Agosto. Um dia depois do nascimento da menina que lembra os pastéis de nata.


Petronio

Petronio nasceu sem cabelo um ano antes de Canela. Quando chora abre um sorriso largo e sonoro. Tão forte que Setembro inteira dá conta da revolta do garoto. Maravilha, sua mãe, fugida da casa materna conheceu Augusto numa esquina. Perdida.
- Moça bonita!
- Me deixe…
Augusto é o homem mais bonito de Setembro. Ninguém sabe quantos anos de vida ele tem. Alto, Negro.. Sorridente mostra uma dentadura perfeita. Branca.
- Você vem de onde moça?
- Da casa de ninguém. Que interessa isso?
- Assim tão raivosa … adivinho uma dor
- Me deixe moço
Augusto ameaça a despedida. Vira as costas oferecendo a Maravilha as suas omoplatas - visão de um futuro desejado.
- Moço desculpe. Espere
Lentamente o ombro direito diz que sim ao esquerdo. O pescoço que sustenta a cabeça aceita o convite.
- Venha daí moça. Amanhã há festa em Setembro.
- Me diga primeiro seu nome que vim de não sei onde. No lugar onde nasci deixei de existir. Faz dois quilómetros que disseram que meu nome é Maravilha. Aceitei o baptismo. Agora é a sua vez. Você já sabe muito de mim
- Augusto
Maravilha estende a mão esquerda. Augusto reage com sua mão direita. No horizonte se adivinha festa. Em Setembro é quase Natal.
Petronio nasce em 30 de Agosto. Um ano e quatro dias antes de Canela. Augusto é o pai. Maravilha – menina antes perdida – é a mãe.
Setembro existiu sempre. Ninguém sabe quando apareceram as pessoas. Conta-se que todas vieram fugidas de algum lugar. Sem família. Sozinhos. Desgarrados foram chegando. Petronio foi o primeiro habitante que nasceu em Setembro.
Nesse dia aqueles que fugiram em busca da vida lembraram. O corpo do Mestre tremeu de medo enquanto a felicidade dos outros num som colectivo gritava:
- Nasceu o menino
Em Dezembro, Setembro comemorou o primeiro Natal dos Desgarrados.
Padre João que ninguém sabia que era padre confessou:
- Cresci na Igreja de Santo Estêvão, sinagoga de outrora. Li a cabala, fui ordenado por um bispo nascido na aldeia. Não conheci o monge que pregava o abraço. Mas de tanto ouvir falar fiz dele meu herói. Falava de Budha. Sou padre, amigos. Se houver Natal em Setembro rezarei a Missa do Galo…
Desta vez o Mestre não só tremeu. Do peito uma dor conhecida gritou:
- Não! Tudo de novo NÃO!
Distraído o povo comemorou. Afinal Setembro já tinha Padre. No Natal já teria uma igreja
O Mestre se afastou. Na praia lavou seu rosto marcado de rugas profundas. Em cada prega o sal abrindo caminho.
- Reinventaram o pecado. Fugi da maldade alheia.. No horizonte sempre acreditei que Setembro existia. Acolhi todos os desgarrados como eu. Amei Iracema, amei Joana. Inventámos a amizade. O desgarrado João afinal reza a missa! Que interessa o passado? Não sei do meu. No dia que parti larguei quem fui. Homem novo em Setembro. Recomeçar do zero. Construir o presente. Não desejei. Vivi simplesmente. Foi neste recanto que deixei de sofrer. Porque volta tudo a acontecer?
João procurou o Mestre por toda aldeia. Onde estava o homem que o ensinou abraçar?
- Mestre! Mestre não me abraças? Já posso ser quem sou
- Engano seu João
- …
- Deixaste o passado invadir o presente. Deixaste de ser
- Abraça-me Mestre porque a minha felicidade está carregada de uma dor que não entendo
Mestre chora em silêncio. Levanta-se com esforço. Abre os braços
- abraça-me
Mestre contorna seus braços no amigo. Peito contra peito. Dois corações que num breve instante se entendem num pulsar único. Era assim a eternidade em Setembro.

Canela? Canela minha amiga me diga o que você vai fazer quando a mão sentir a falta do braço para te dar um abraço, feito o abraço do Mestre?

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