17/08/2008

CARTAS EM ANDAMENTO

Quem dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir. Depois tu sorris e eu esqueço tudo que aprendi.


Não me lembro com clareza de como vim parar aqui. Quando os burocratas tomaram o poder substituíram a censura pela leitura seletiva, fui colocada no ministério da cultura como 'leitora profissional'.
A vida é feita de regras e a mim destinaram a tarefa de ler cartas e em seguida arquivá-las na caixa das 'cartas lidas'.
Recordo agora que no primeiro dia li todas num ápice e o meu colega Sebastião aconselhou-me a voltar a colocar as cartas já lidas na caixa das 'cartas por ler', doutra forma seria despedida.
Lembro-me de ter sorrido. Ignorando o conselho corri ao gabinete do secretário de Estado.
- As cartas já foram lidas. Devo responder?
- Todas? Se não há mais cartas para ler, sou obrigado a despedi-la.
Tremi e menti:
- Penso que ainda tenho algumas em atraso. Mas não devo responder às que já li?
- Seu trabalho é de leitura. Ninguém escreve à espera de uma resposta. E se esperar, paciência. Continue lendo. Quando já não houver cartas para ler,  acaba o seu trabalho.


Quem dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi

Porque agora a ladainha da velha? Porque esta dor que rompe o som?)

No corredor, Sebastião consolou-me:
- Eu avisei. Coloque as cartas lidas no caixote das 'cartas por ler', se quiser este emprego…
Passaram 20 anos e o meu sorriso perdeu-se pelo caminho. Não sei quantas voltas já dei ao caixote.
Há cartas que sei de cor, outras o tempo tratou de engolir o texto. 

Passados seis meses o secretário de Estado foi demitido e eu já me habituara à rotina das caixas.
Ninguém se preocupou. O trabalho quando é bem feito não deve ser alterado.Encontrei uma metodologia que rentabilizava o circuito. Quem precisa de mudar quando tudo se mostra perfeito?
Amanhã vou acompanhar o corpo de Sebastião. Morreu de morte natural – foi o que li na carta que a esposa enviou aos colegas. Esta vai para o caixote das 'cartas lidas'.


Quem dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi

(Sempre a ladainha da velha. A mesma dor que rompe o som – todos os dias!)

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