se a laranja for ácida e se a cada gomo as lágrimas te vierem aos olhos, me diga Cleo se é esse o paladar da loucura. Desenhos e textos de Ethel Feldman
22/11/2006
Sei que havia luz porque ainda sinto na boca o sabor desse dia.
Canela cresceu acreditando que haveria alguém em algum lugar que a abraçasse com a intenção de abraçar.
Em Setembro quando Petrónio agarrou-a entre braços sentiu o corpo do amigo estremecer. Nem conseguiu contar o segundo e o abraço se vestiu num beijo na boca.
Em casa quando sua mãe a carregava em braços era um abraço embalado em lágrimas, vinculado à saudade que a mãe sentia da felicidade.
Canela sufocava tal a ilusão da espera de um abraço.
- Mas porque gostas de mim Canela?
- Porque sim
Era assim o gesto dessa menina. Gostava porque gostava. Chorava porque chorava. Ria porque sim.
- Canela! Este vestido está cheio de nódoas… Não podes sair assim!
Despreocupada com a aparência das coisas Canela respondia:
- Se eu engolir todo o ar que encontrar pelo caminho, achas que roubo também o teu ar mamã?
Sem esperar pela resposta Canela abria a boca e sugava todo o ar que a rodeava. Colocava-se em frente ao aquário e esperava. Com as bochechas quase roxas Canela suportava o ar quase morrendo de falta de ar. Somente o grito desesperado de sua mãe a fazia ceder. Era hora de vomitar.
- Um dia morres miúda!
- Esse dia existe mamã?
- ?
- O dia de morrer… Existe isso mamã? Ouvi João dizer que tudo é vida
- És muito nova para perceber. Mas um dia alguém vai te explicar melhor que eu
- Esse alguém fez o curso da Morte? Porque ouvi dizer que tudo nasce e morre e volta a nascer. Parece que é o curso da vida… Não percebi nada, mas ouvi
- Vá Canela. Despacha-te que chegas atrasada a escola…
Um dia Canela sentou-se a meio do caminho. Dizia que era o cansaço que a impedia de continuar o percurso. Sentou-se no meio da estrada. Tirou da mochila, linha e agulha e cozeu a saia por entre as pernas - uma menina bem comportada não deixa sugerir suas vergonhas. Veio a tarde e Canela viu o sol se despedir. Quase noite e Canela assistiu a gente da ilha a regressar a casa. A cada um explicava:
- Tenho um cansaço tão tão … cansaço que me impede de sair deste chão. Mas não se preocupe estou mesmo feliz. Só cansada…
Ao fim da terceira repetição Canela gravou a ladainha que justificava estar sentada no meio da rua. A cada nova abordagem Canela rebobinava a fita e reproduzia:
- Tenho um cansaço tão tão … cansaço que me impede de sair deste chão. Mas não se preocupe estou mesmo feliz. Só cansada…
Passado umas horas já ninguém se importava se Canela dormia no chão.
Essa capacidade que o ser humano tem de a tudo se adaptar destrói qualquer esperança de rebeldia contra a injustiça. Assim o que parece estranho rapidamente passa a corrente.
Petronio acompanhou Canela desde o inicio. De noite foi para casa. Jantou e correu para se deitar com Canela que de tão cansada informou que por ali passaria a noite. De repente era normal dormir ao relento. E o amigo trouxe um cobertor para agasalhar a noite da amiga.
Enrolados na manta colaram seus corpos. Pés com pés, abraços a responder a vontade de amar. No meio do caminho, dois jovens amigos descobriram o desejo de um estar no outro tão dentro de cada corpo.
Esquecido o cansaço veio um abraço que selou o abraço.
Docemente Canela recorda:
- “Não sei de onde vinha a luz que envolvia o meu corpo, se era sol ou era lua. Pudesse pintar o sabor daquela noite que ainda trago no corpo”
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