20/11/2006

A menina será Canela! Vai temperar a vida, seja ela bonita ou feia

Na terra pura a semente dá fruto, assim é quando se ama. O corpo se abre ao ciclo da vida. Quando as regras faltaram Virgínia adivinhou outro movimento no seu ventre.
Nove meses no tempo corrente – a eternidade na esperança de quem acolhe no corpo a cria.

De longe o Mestre assiste cada capítulo da vida daqueles que um dia abandonou. A arrogância fez da dúvida a certeza, do relativo o absoluto. Quando o medo se instala a dúvida se transforma em verdade. Levantamos o corpo, inspiramos todo o ar com medo de não respirar, abrimos os olhos como se só arregalados soubéssemos poder ver a verdade, e por fim lentamente apontamos para o mal. Mal damos pelo ar que nos falta, tão pouco reparamos o nó que nos faz contorcer o ventre. Continuamos a apontar a poente como se fosse a lua culpada da noite. Sem voz ameaçamos um grito no escuro:
- Vem de fora o mal que atormenta minha paz!
Se nessa hora houvesse um espelho… Tremenda seria a surpresa do engano!


Nem João deu conta do medo do amigo Augusto. Deixou-o partir.
O Mestre palmilhou Setembro sem nunca deixar de ouvir Petronio. Se chorava de fome ou se ria de nada. Adivinhou a língua enrolada imitando a mãe. Recolhido Augusto escutou seu corpo lamentando o desejo. Vontade de voltar. Disse alguém que o tempo não recua ao passado. E assim sem saber como nem porquê Augusto foi ficando por lá. Do lado de fora da ilha.
Quando Canela nasceu Augusto assistiu. Julgou adivinhar nela a solidão. Vestidinho de cambraia cor de rosa. Uma cabeça que teima em sair do lugar. O sorriso que disfarça o desconforto do não entendimento.
- Canela! Por onde viaja a tua cabeça menina?????
- CANELA!!!
Canela, Caanela, Caneeela! Fosse na clave de sol, fosse na clave de fá Canela - agudo ou grave. CANELA sem nunca acertar.
A menina foi crescendo com o som do seu nome feito ladainha de um mal sempre presente. Nunca respondia porque simplesmente nunca soube a resposta. Ouvia simplesmente. Espantada não reagia. Como dizer que lhe faltava o entendimento dos gritos desesperados a pedirem justificativas de cada um dos seus actos?
Com o correr dos tempos Canela deixou de se importar com a resposta. Seria isso a tolerância? Seria isso a solidão?
- Mãe que importa se nove e dois são onze se conto noves fora dois? Vale o onze? Eu vejo dois números que se namoram sem descanso…Mãe! Nunca ouviste a história do onze?

Só passados onze segundos,
onze horas, onze dias,
onze anos, onze séculos,
voltas a encontrar sintonia.

No intervalo somas, multiplicas, substrais,
divides num resultado sempre diverso.

Olhas o rio. Aceitas a corrente,
Se fores budista aceitas a vida.
Se for diverso o que sentes
Aceitas sempre

Enquanto aguardas
Por um novo ciclo.

Onze segundos, onze séculos
Redonda sintonia …

- CANEEELAAAAAAAAA! Cala-te!

- Mãe que importa … o onze se vejo dois num eterno namoro?

Canela e Petrónio são os primeiros nascidos em Setembro. No notário ficou escrito em edital:
“Os nascidos na aldeia de Setembro serão Setembrinos”.
Assim como quem nasce em Lisboa é alfacinha, quem nasceu em Setembro é desgarrado. Apesar da lei ter ditado o contrário.

Quando Maravilha menstruava restava na cama febril todo o ciclo. Um aperto no peito parecido com a saudade acompanhava o derrame.

- Mestre por onde andas? Saudades que tenho do amor que te tinha… Mestre quantos anos serão precisos?

Toda Setembro escutava o lamento. Todos fingiam nada ouvir.

- Maravilha…
- Canela. Cala-te!

- Mestre! Quantos anos meu amor, serão precisos para apagar essa saudade que tenho do amor que te tinha?

Quando Canela menstruou pela primeira vez. Adoeceu. Arriscou:
- Mestre!
- Cala-te Canela. Enlouqueceste?
- Sofro do mal de Maravilha? Meu corpo perde sangue… Mas não entendo a saudade mãe… A dor no corpo? O nome do espasmo?
- Cala-te miúda. Vais sangrar durante oito dias. Depois o corpo seca. Passados 28 dias voltas a sangrar…
- Mas porquê? É alguma maldição?
- Canela… coloca a toalha dentro das cuecas. Quando estiver encharcada troca por outra.
- Mas mãe…
- Filha… Cala-te.

Por muitos anos Canela acreditou ter traído a vida. Um castigo igual ao de Maravilha.

- Mestre! Quantos anos? Ai a saudade do amor que te tinha…

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